(Continuação da postagem anterior.)
Interrogatórios de videntes fazem parte da ação dramática das aparições, mas os concernentes a Bernadete estão tão bem registrados por extenso, que aqui só farei um breve exame deles.
Um dos fatos principais é que o vigário cantonal de Lourdes, Abbé Peyramale (descrito como austero, severo e inflexível), manteve-se à distância da situação. Referia-se a Bernadete com "as mais profundas suspeitas" e é possível que encorajasse a polícia a ameaçar prendê-la por perturbar a ordem pública.
Assim, os primeiros inquisidores de Bernadete foram os policiais da localidade. Depois da quarta ou sexta aparição, o delegado de polícia Jacomet ordenou que a trouxessem diretamente à casa dele, no centro da cidade. Em sua maioria, os relatórios afirmam que ele a achou modesta, sincera, sem estar atrás de dinheiro ou atenção, mas, por outro lado, "incompreensível".
As fontes dão versões diferentes do encontro com Jacomet, mas elas são, em grande parte, inventadas, pois ninguém estava presente para anotá-lo diretamente. Porém todas concordam que, no primeiro encontro ou no segundo interrogatório, o delegado Jacomet "perdeu a paciência". Submeteu-a a "arbitrariedades humilhantes" e, por fim, proibiu-a de voltar a Massabielle, ameaçando prendê-la se o fizesse.
Entretanto, o segundo interrogatório por Jacomet acabou de maneira imprevista, por causa das "multidões iradas" reunidas do lado de fora que, aparentemente, ouviram os berros de Jacomet e começaram a vaiar e a exigir a soltura da vidente.
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No dia seguinte, Bernadete "ignorou a proibição" e, acompanhada por uma multidão ainda maior, voltou a Massabielle. Mas a aparição não se manifestou. Ao mesmo tempo, quando percebeu a força crescente da opinião pública e quando também surgiram argumentos em favor da vidente, o prefeito de Lourdes desafiou a proibição policial. De qualquer modo, no sexto dia da seqüência de aparições, as autoridades civis de Lourdes viram-se preocupadas apenas com questões do controle da multidão, quando os romeiros começaram a chegar em grande número.
Depois da nona aparição completamente atordoante (descrita adiante), Bernadete foi mais uma vez chamada para interrogatório, desta vez pelo promotor público imperial da cidade, uma situação mais séria. Mas esse encontro não deu muito certo, aparentemente porque, ao ouvir as respostas e declarações "incompreensíveis" de Bernadete, o promotor perdeu o fio de seus argumentos e ficou "aturdido".
Mais uma vez, a multidão bem maior do lado de fora exigiu a soltura da vidente e, além disso, ridicularizou e zombou do promotor, espalhando que ele sofria de dança de são Guido (doença que causa tremores) e que as velas da casa dele "acenderam-se sozinhas", enquanto Bernadete estava lá. Abalado, o promotor público imperial ficou feliz em soltar a menina.
Posteriormente, Bernadete foi chamada de novo, desta vez pelo magistrado examinador e pelo comandante regional da polícia de Tarbes, uma cidade próxima. Contudo, parece que o assunto principal desse encontro não era Bernadete nem a natureza da aparição, mas sim a forma de controlar as multidões que a essa altura haviam começado a inundar toda a região ao redor de Lourdes e de Tarbes.
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A distância que padre Peyramale colocara entre as aparições e a Igreja começou a se estreitar em conseqüência da 13ª aparição (em 2 de março), na qual Aquero pediu a Bernadete para "dizer aos padres" que o povo deveria vir à gruta em procissão e que uma capela deveria ser construída ali. Eram notícias eletrizantes em uma situação que já estava bastante carregada.
Para transmitir essa mensagem, Bernadete foi à residência do padre Peyramale, acompanhada de duas tias, irmãs de sua mãe, e seguida por uma multidão de aproximadamente duas mil pessoas.
Padre Peyramale não gostou da delegação formada pelas três, aparentemente porque certa vez expulsara as duas tias da Escola dos Filhos de Maria, depois que ambas engravidaram antes do casamento. A ira dele deixou Bernadete tão confusa e intimidada que ela saiu de sua presença com as tias sem se lembrar de transmitir os pedidos de Aquero.
Foi então decidido fazer um sacristão amigo enfrentar a ira do padre e quando o sacristão finalmente apresentou os pedidos da Senhora ao sacerdote, padre Peyramale viu-se obrigado a tomar decisões em nome da Igreja.
Padre Peyramale exigiu que Aquero dissesse seu nome. Algumas fontes declaram que também exigiu que ela fizesse florescer imediatamente, no frio do inverno, a roseira quase morta que havia na frente da gruta. Outras fontes omitem a referência à roseira ou declaram que ela não existia. Mas é provável que a existência da roseira fosse real, pois a menção dela está incluída nos primeiros rumores que Joana Abadie espalhou pela cidade (que a Senhora apareceu acima e ao lado da roseira).
Depois da 15ª aparição, porém, é quase certo que não se encontrassem provas da existência da roseira — em grande parte porque muitos dos oito mil romeiros que desejavam uma lembrança haviam pegado tudo o que podia ser levado como recordação. Se a roseira tivesse florescido, teriam arrancado as flores como relíquias, depois os talos e caules e até as raízes.
O pedido do nome feito por padre Peyramale foi transmitido a Aquero durante a 15ª aparição. Mais uma vez, o nome não foi dado. É bem provável, como muitos alegaram, que padre Peyramale agora sorrisse consigo mesmo, por causa desse anticlímax. De qualquer maneira, ele agora achava que não eram necessárias decisões eclesiásticas sobre a aparição e que Bernadete estava no fim.
Embora Bernadete voltasse todos os dias a Massabielle, parecia que as aparições da quinzena tinham cessado — para grande desapontamento das multidões cada vez maiores. Entretanto, a ação dramática em Lourdes não terminara, de modo algum, e, na verdade, estava apenas começando.
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A opinião popular das multidões já decidira que a identidade de Aquero era a da Santíssima Virgem Maria. Bernadete começara a rezar o terço enquanto se ajoelhava na gruta e dizia que Aquero pedia "orações pelos pecadores". Quem mais Aquero poderia ser, além de Maria Santíssima?
Muita gente no meio das multidões afirmava ver a Virgem Santíssima no local e "ouvir vozes" que não vinham de parte alguma, e diversas crianças tinham ataques, entravam em transe ou ficavam histéricas. Por ocasião da 15ª aparição e apesar das objeções do clero, o local estava completamente tomado por imagens votivas da Virgem. A esse tempo, os que acreditavam na aparição ainda eram chamados "devotos" que tinham "almas simples" (leia-se "almas obtusas") e eram em número significativo nas multidões.
Os devotos acendiam muitas velas no local e as deixavam acesas, o que os policiais de Lourdes e de Tarbes consideravam risco de incêndio. Mesmo assim, os arredores de Massabielle "brilhavam lindamente à noite". Muitos atiravam dinheiro na caverna, pois ainda não havia ninguém encarregado de recebê-lo. Assim, a situação começou a fugir ao controle das autoridades municipais e dos clérigos locais e a passar diretamente para as mãos da devoção popular. Entre as multidões que chegavam havia um número cada vez maior de pessoas instruídas e incrédulas (diferenciadas dos camponeses analfabetos e dos "adeptos ignorantes"). A aparição era levada a sério.
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Mas a aparição em Massabielle teria sido esquecida na história se não fosse pela decisiva nona aparição durante o período da quinzena. A nona aparição ocorreu na quinta-feira, 25 de fevereiro, ou na sexta-feira, 26. Durante a aparição, Bernadete, que estava ajoelhada, levantou-se inesperadamente, sem sair do êxtase. Primeiro, virou-se e ficou de frente para o Gave. As três mil pessoas que a essa altura formavam a multidão ficaram em silêncio.
Viram-na olhar um momento para trás, para a aparição que ninguém mais via, como se pedisse instruções. Depois ela sacudiu a cabeça, numa espécie de assentimento. Começou a mover-se de novo, desta vez em direção à gruta onde quase entrou — e pôs-se a cavar febrilmente com as mãos.
Quase no mesmo instante, uma água barrenta começou a jorrar na depressão rasa que ela cavara. Bernadete bebeu um pouco dessa água, lavou o rosto com ela e arrancou e comeu um pouco de capim das bordas do buraco lamacento. Levantou-se e saiu da gruta com o rosto coberto de lama e ainda mastigando o capim. Alguns dos observadores próximos começaram a rir às escondidas e outros disseram que, finalmente, ela enlouquecera. Seguiu-se um pandemônio, com gritos de "prendam-na!".
Bernadete teve de ser escoltada até uma casa na rue des Petites-Fosses, na cidade. Só ao chegar a salvo nessa casa, ela contou que Aquero a mandara cavar no lugar seco e dissera: "Beba a água e se lave na fonte e coma a grama que estiver ali".
Ainda naquela mesma tarde, os que chegavam a Massabielle viam um novo filete d'água que brotava da gruta rochosa e corria para o Gave. Na verdade, a torrente aumentava enquanto olhavam. No dia seguinte, a fonte estava produzindo 25 mil galões de límpida água doce a cada 24 horas.
Vivia em Lourdes um "simples cavouqueiro" chamado Louis Bourriette. Segundo confirmação médica, ele sofria de amaurose incurável (estava ficando cego). Louis Bourriette pediu que lhe trouxessem água da fonte. Banhou os olhos quase cegos nessa água — e voltou a ver, fato confirmado pelo médico do lugar.
Na manhã do dia seguinte, essa notícia eletrizante inspirou Jeanne Crassus, que havia dez anos tinha uma das mãos paralisada, a ir a Massabielle. Ali ela mergulhou a mão inválida na água por alguns momentos e quando a ergueu para todos verem, a mão voltara a ser normal.
As notícias desses milagres espalharam-se rapidamente. Houve uma "explosão de aplausos" entre os milhares de testemunhas reunidas em Massabielle. O tumulto logo se espalhou por toda a cidade, onde os sinos das igrejas começaram a tocar. As pessoas amontoavam-se, gritavam e soluçavam nas ruas e "ouvia-se a comoção à distância no campo".
Quando milhares tentaram chegar até a água, houve distúrbios na gruta. Instantaneamente aconteceram mais curas. Policiais, agora acompanhados por soldados, chegaram para tentar manter a ordem. Foram sobrepujados pelas multidões e, de qualquer modo, a maioria deles juntou-se às massas, na tentativa de beber a água.
É muito difícil compreender como Abbé Peyramale e seus colegas canônicos, os padres Pomian, Serre e Pene, puderam manter-se distantes dessas curas. Contudo, foi o que fizeram: condenaram-nas como "tolice" e foram criticados por esse "ponto de vista inflexível". Contudo, as primeiras curas levaram o padre Peyramale a reconhecer que Bernadete, afinal das contas, "devia ser sincera". Mas nenhuma questão teológica estava envolvida ainda e os clérigos continuaram desinteressados.
Continua...
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